26.4.10

Hablas Espanhol?, pelo técnico Marcio Bellicieri

O cara deu umas rabiscadas no papel, uma folha jornal, rascunho, largada sobre uma mesa de canto. Uma mesa bem mal organizada, cheia de restos de edições diárias de ontem, hoje, amanhã. Cadernos de esportes...
Amassou mais uma folha. 
Logo ao lado, um, dois, três, uns quatro Periódicos “bien abiertos” na Seccion de Deportes, em língua estrangeira, que era quase-quase português, mas que diferença...

Tá certo que de português pra espanhol é tudo a mesma coisa, mas o sotaque... Ah, o sotaque faz toda diferença. 
O cara amassou mais papel jornal do caderno de esportes nacional, fez uma bola de duas , três folhas... "Mira precisa, un ojo mais cerrado, otro mas abierto ". Clínico, elaborado, técnica de mestre. Fez munheca, a la Michael Jordan, de toda manha que lhe podia caber e... Chuáááá!'
Gol! Acertou o cesto de lixo, sem rodopiar ou chorar.
Acertou em cheio...  
A quem visse a cena, assim espectador, daria vontade de saber o que estava escrito no jornal.
Uma curiosidade... 
Levantou-se da cadeira, uma dessas, tipo executiva, em pose impáfia. Era um presidente, um diretor, um verdadeiro gentleman, ou... como é que se fala mesmo diretor em espanhol? Director? Dairector? Diretore? Dromedário?
Ah, deixa pra lá, é quase tudo a mesma coisa...
Mas o sotaque... que sotaque aquele do espanhol...
Fez a pose da munheca arremessadora, que munheca aquela... 
Mirou-se no espelho que ficava bem ali, do lado da mesinha, em um ângulo que ele pudesse se enxergar bem, a maior parte de seu dia.
Ele era o máximo, tinha todo o tempo de posse de bola.
Até amassou mais um papel e Chuááá!!!
GOL!! Ele era demais!! 
A quem visse a cena... daria uma curiosidade de saber o que o dirigente havia rascunhado no papel... Um cara assim, como ele, com sotaque espanhol, e toda aquela habilidade com as bolas de papel... só podia ser algo genial! 
Pôs a mão na barriga, fez uma careta...
Ah, ainda bem que o banheiro ficava logo ali, do lado da mesinha de canto em que escrevia nos papéis jornais, que viravam bolas e iam sempre certeiramente parar no lixo.
Bem ali, do ladinho do espelho- espelho meu, sempre por perto, em que ele se olhava e tentava fazer trejeitos de espanhol, ou argentino...
“ -  Hablas espanhol?? ” -  repetia e repetia para tentar ajustar o sotaque.  
Pôs a mão na barriga, novamente...
Sorte que o banheiro ficava ali do lado.
Era isso que ele melhor fazia: gols na lixeira, espelho-espelho meu e sentar no trono. Uma vez atrás da outra, outras atrás de uma...
Ainda bem que tinha os cadernos de esporte pra que pudesse se limpar.
Ah, os cadernos de esportes nacionais sempre o limpavam, sempre com os discursos conciliatórios patriotas que o justificavam um grande dirigente esportivo...  
É... ia sentar no trono dali a cinco segundos...
Cinco, quatro, tres, dois, um... Ufa, que alívio!
Era quase como arremessar na cesta de lixo...
Quase como ganhar um jogo. 
E retornou à rotina de se limpar com jornal nacional.
E nem era Natal, qualquer época do ano, qualquer dia ou mês, ele sempre usava os cadernos de esportes pra se limpar.
Jingle bells, jingle bells, acabou o papel... 
Os “periódicos de deportes”, não... os de deportes hablavam espanhol.
Mas logo logo ele também ia saber falar baloncesto.  
Ah, então a curiosidade foi desfeita!
Era isso que ele rascunhava no papel jornal nacional: B A L O N C E S T O...

Deu mais uma sentada no trono e se limpou com a matéria do dia, que coincidentemente falava do basquete nacional e das contratações, do espanhol e do argentino, qualquer um desses gringos, imaculados, quem ele não sujava.
Esses não, esses não eram latrinos... Brasileiro sim, tá acostumado com m...
Limpou-se em português e... Chuááá '!!!
Acertou mais um gol na cesta. Ele era bom mesmo...   
Pena que não deu pra ver o que estava escrito na matéria borrada.
Ao dirigente, também, não interessava; afinal, fosse o que fosse, não serviria de nada.  Ele nem fazia questão de saber português.
Mas daria uma vontade de imaginar, a quem visse a cena, do dirigente no trono, se limpando com caderno de esportes tupiniquim e arremessando ao cesto; daria uma vontade enorme de saber o conteúdo da matéria do dia.
A matéria que falava sobre basquetebol, e não baloncesto... 
Talvez a matéria começasse elogiando a confederação pela atitude tropicanalha de entregar-se limpo ao estrangeiro.
A matéria ainda devia enaltecer a atitude dos dirigentes, no tocante a sua preocupação criteriosamente técnica com o basquetebol nacional, que aliás, mudaria de nome: viraria baloncesto.
Ah, os dirigentes, especialistas em acertar bolinhas de papel no cesto de lixo e fazer gol... 
Talvez a matéria desse graças à  contratação do argentino.
Olha só que benevolência, o baloncesto brasileiro fazendo as pazes com os hermanos. Levando bandeira branca à intolerância recalcada do futebol. Bandeira branca! Pra que, verde e amarelo? 
Talvez a matéria admirasse o planejamento inteligente da reforma a longo prazo, exposta no contrato de seis meses com o técnico espanhol, para dirigir a seleção brasileira feminina... Seleção brasileira????... 
Bandeira branca! Pra que verde e amarelo?  
Não, não era uma piada, claro que não. O Brasil já tinha esse histórico de incompetência pra tudo mesmo, nada mais óbvio, raízes são raízes.
E outra, um contrato de seis meses no país que esquece até seu dia seguinte, que não tem memória alguma, é um compromisso considerável.  
Ah, mas o melhor mesmo, segundo a matéria, seriam as declarações dadas pelos dirigentes sobre os idiotas nacionais, aqueles “tecnicuzinhos” desatualizados, acostumados à escassez de clube, que brigam por patrocínio, treinamento de base, conceitos, salários em atraso, calotes; que tentam vestir a camisa verde e amarela ao invés de empunhar a bandeira branca; a esses coitados, que nem devem saber  a diferença entre NBA, WNBA, ACB, NCAA, NBB, PCC, CQC... PQP... a esses seria aberta uma Escolinha Nacional de Treinadores.
Imaginem, os caras que escreveram a história do basquetebol, em português castiço, retrato de toda dificuldade e descaso; a esses “tecnicuzinhos” seriam dadas aulas de reciclagem (sob pena de repetência???) com sêlo da CBB. 
A mesma entidade que desmerece o basquetebol, cria o baloncesto.    
O curso teria até especialização nivel IV- Lato Sensu...
Porque não um MBA? Ah, talvez ficasse muito parecido com NBA, não soaria bem, ia parecer falta de criatividade.
Nunca que esses tecnicuzinhos pré-históricos teriam uma oportunidade dessas.
Reciclagem é tendência universal! E além do mais, pra que servem vinte, trinta, quarenta anos de experiência (ou mais)?
Pra que serve uma vida?
Só pra ficar ultrapassado... 
Mas cabe aqui, um parênteses. Se o basquete nacional está em crise, é culpa da Confederação suja o verbo nacional; e depois se oferta, limpa e letrada, hablando espanhol ao estrangeiro...
Devem ser mesmo as raízes... 
A matéria talvez esquecesse de questionar porque a Europa, no caso da contratação do basquetebol feminino.
Talvez eles sejam tecnicamente bem melhores que os norte americanos... ou os americanos sejam muito capitalistas, assertivos, competentes, e falem inglês... Preferimos línguas latinas, Che Guavara, e outras varas mais amáveis quando o assunto é ofertar-se em reverência.
Ah... devem ter escolhido o espanhol em homenagem a Cristóvão Colombo, ou porque lá se habla espanhol, é mais fácil de entender.
Se fossem homenagear Pedro Álvares Cabral contratando um português, ia virar piada pronta...
Se bem que piada pronta o espanhol já contou... Do alto de sua “vasta experiência” em títulos infanto-juvenis, é concedido a ele o direito de ver o basquete brasileiro como decadente, nos últimos anos. 
E a matéria talvez acabasse assim, uma indignação entrelinhas, mas totalmente ineficaz, como toda letra nacional deve ser.
Muda! 
O dirigente se limpa outra vez com o jornal nacional, e pimba!
Faz mais um chuá...  
Adversários jogando no mesmo time.
Como se habla mesmo? ...
Cesta contra!!!
Ou o buraco do basquetebol é  mais embaixo... o vulgo tirar da reta...  
O que antes tinha assento e trono, acho que nem acento mais tem...
Essa nossa língua é assim mesmo, sem personalidade.
De reforma ortográfica a Escolinha de Entrenadores... tirando da reta pra apontar um culpado.
Como se o analfabetismo fosse culpa das regras ortográficas; e a decadência esportiva, culpa de quem sua a camisa pra acertar uma cesta...
                                                                             
                    Prof.Marcio Bellicieri
                                                                        Técnico de Basquetebol